quinta-feira, 3 de março de 2011

Viagem no tempo



Perdidos os deuses e a dignidade
é preciso sacrificar
a ingenuidade de uma criança
levanta-se o sol sobre a terra
os monólitos erguem as suas mãos de pedra
o cordeiro pasta tranquilo
na serra um rio corre
entre ervas daninhas, frio frio
duas eras se encontram
o tempo de antes dos tempos
e o fim da coragem
sacrificamos-te donzela
porque a nossa audácia
morreu connosco
e as preces que erguemos
em templos de cinza
não encontram eco
se fosses diferente
não tinhas sido banida
nem violada nem sacrificada
mas a mesma piedade inútil
que nos desgosta
levou-nos ao teu altar
e celebramos rituais de sangue
na tua carne branca
porque a nossa fome é vasta
e agora
apagada que foste da nossa memória
e da nossa alma
o mundo ficou mais limpo
e o nosso desgosto mais simples
só eu que te canto
não sinto assim
nem vejo a necessidade
do sacrifício como um fim
por mim estarias aqui
embalando a vida nos braços
não lá fora na noite
perdida entre dois mundos
e a minha alma contigo
esperando pela morte
esperando pela vida
e sem haver
nem agora nem depois

Lisboa,Novembro 1983
JC

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