quinta-feira, 3 de março de 2011
Euridice
Amarei mil
e todas serão teus rostos
disfarçados de névoa
e mito,
Euridice
que não se trái o amor
nem o amado
nem o amante
de que somos o resultado
e este instante
cansa-me esta espera
e o tempo que virá ainda
em vão olho o horizonte
as nuvens que passam
passam longe
e está frio
trocaste tudo
misturaste o anjo
como o vôo alado
e eu cujo destino não teço
nem fio no tear do acaso
dou por mim de olhos baços
e os braços erguidos em vão
os deuses nada me dizem
e os homens que me dirão?
traiu-nos a morte
certeira como uma lança
e empunhou-a esta quimera
e essa criança
ah Euridice
antes o passado não tivesse sido
e Hermes, descido à terra
ignorado o meu lamento
do que ter-te por esperança
e voltada a face sobre o abismo
(que a dúvida é grande)
ver-te que já te perdias
intemporal no mito
não me julguem os deuses ingrato
nem os homens mais um poeta triste
mas ter-te assim
e saber-te aprisionada
é dor que nada canta
antes a morte
que a loucura, para esquecer
de vez o teu encanto
em vez disso
eis-me que percorro o tempo
e traço o fio da eternidade
esculpindo-te aqui
ali cantando-te
a seguir tacteando-te
nesse rosto e no outro e no outro
mas vem a madruga e é outra
e nasce o dia e parto
passaram mil eras
e o sonho de tantos poetas
fez deste tempo um leito
para ti, raínha
quem é esse estranho
que te traz pela mão
e te chama minha
não sabes acaso
que pertences ao sonho
e teus são apenas
estes versos
e esta ternura
ah acorda
que o teu sonhar
dura há demasiado tempo
esse que os deuses chamam mensageiro
nem é teu nem durará sempre
veio com a manhã silenciosa
partirá com o entardecer
tu raínha pertences à noite
e a esta história de amor
por acontecer
não confundas peço-te
mais uma vez tudo
sou eu que te espero
Orfeu das lágrimas
e dos risos mudos
vém Euridice
a noite espera
dá-me a tua mão
imagem
27 Maio 1984
JC
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