quinta-feira, 9 de junho de 2011

Sombras ainda



Que vento estranho sopra lá fora?
Eu oiço-o e tenho de ir com ele.

Tal como o veleiro
só de velas abertas ao vento o mar corta e vive,
assim eu,
até que tudo o que é do homem morra por fim.
Então sim,
poderei descansar de mim
e viver por fim.

Esta voz é tua ainda
e escutá-la no sussurro do vento
ou na água dos rios,
é tudo que Deus me deu.
Devo agradecer por isso,
enquanto espero que Ele se lembre de mim.

Pudesse este grito ter-se calado
e, gasto por ti e por mim,
fundir-se no que sentimos.
Mas outro foi o sentido das coisas
ou de nós

Que sei eu da vida,
senão que o rio corre,
a lebre salta sobre o monte,
a ave voa de encontro ao horizonte,
e tu amanheces nos meus braços,
agora

Feliz seria se esta voz se calasse,
tormenta ou eco de outro que há em mim.

É Deus que grita ainda,
e eu, surdo pela sua voz a tudo que não seja ele,
só para o realizar existo.

Na guerra seria feliz,
não por haver nela felicidade,
mas por esgotar esta ausência de ser em mim alguem

Viver apaziguado,
eis o que chamo cobardia.
E no entanto foi isso que busquei construir.
Se não o fiz foi porque Ele mo impediu.

Uma boa morte, eis uma benesse.
Mas para morrer bem é preciso ter vivido,
e eu não vivi.

1 de Dezembro de 2004
JC

Quando a manha nascer



Quando a manhã nascer
o teu corpo será um botão de rosa
e as minhas mãos
o orvalho primaveril que o humedeceu.

Como se tudo quanto veio antes de nós fosse uma miragem,
e eu esqueço-a porque nunca a vivi.

Ou como se existissem várias realidades paralelas a esta,
e vivendo contigo tivesse optado por uma apenas.

É estranho olhar para trás
e nada disso ter significado algum.
Como se não tivesse vivido,
ou como se tivesse acontecido a outro.

Lisboa,1990
JC

Falar do amor



Falar do amor é como falar da morte,
é como falar de um anjo de trevas e luz
ancorado num mar de silêncio,
é como falar de ti
e das ervas que bordejam os caminhos da montanha,
os caminhos que levam à loucura.

Tudo nos é permitido meu amor,
na condição de nada querermos.
Tudo nos é permitido porque tudo nos é proíbido,
é preciso entender.

A suavidade dos corpos é uma armadilha doce, tão doce,
até para aqueles que, como nós,
já não sabem descer ao poço do desejo
sem levar com eles a consciência,
essa ave negra.

Imagino-te presa das ondas desse mar que convida à morte
à morte ou ao esquecimento,
que é uma forma de adiar a morte
e de a tornar mais próxima dos sentimentos.

Imagino-te sem te ver,
estendida ao sol
sob os olhos daqueles que não sabem ver,
presa tu também do fascínio do céu reflectido nas águas
ou nos olhos das gaivotas
que, lá do alto, traçam o rumo das estrelas.

É preciso cortar a luz com as mãos,
retê-la um instante
e, depois, libertar o seu aroma de ervas e pinheiro manso.
É preciso saber viver
e não nos demorarmos demasiado aí.

Falo-te das fadas e das crianças,
que são fadas prematuras,
falo-te das pedras boreais
e dos corpos caídos junto ao mar
falo-te do supremo silêncio
que é um grito disfarçado.
Falo-te assim, com palavras,
como se fossem gestos.
Mas não são,
e eu sei-o e tu também.


Benidorm, Julho 1989
JC

quinta-feira, 3 de março de 2011

Barry Lyndon, Trio op 100 (Schubert)

John William Waterhouse _ Pre-Raphaelite Painter

Gustave Moreau

Tudo é simbolo e analogia (Pessoa)


Propondo como tema de meditação, na reunião de Ioan do primeiro domingo de Março de 2004, o tema de Maria, vi o que descrevo:

Maria ergueu-se do ataúde (ou do seu leito) que estava a meio do Templo, sobre a estrela, e penetrou num corredor longo e escuro. Na mão direita levava uma vela acesa com que alumiava o caminho. Vendo-a penetrar sozinha nesse corredor, acompanhei-a. Maria caminhava em silêncio e não me pareceu que tivesse dado conta que a seguia. Por fim atingiu uma antecâmara, e penetrou numa porta. Mais uma vez fui com ela.

Penetramos num mundo de sofrimento atroz. Em todas as direcções viam-se apenas pessoas em grande sofrimento. Umas rastejavam, outras caminhavam aos tropeções. Todas gritavam de dor. Maria, qual estatua viva no meio desse sofrimento, estava de pé e em silêncio.

Vi aproximarem-se dela os seres que sofriam e, agarrando-se-lhe ao corpo, quebrarem este em mil bocados. Cada um levou o seu bocado. Percebi que estava acontecendo ali uma espécie de despedaçamento para que a alma se pudesse libertar. Efectivamente, tendo todo o corpo sido destruído, uma luz branca e oval, tal como a chama da vela quando ascende, libertou-se desse corpo agora inútil.

Nessa figura, nessa subtileza sem forma definida, sem contornos de pessoa ou ser distinto, atingiu a porta da antecâmara e, indo até ao centro, ascendeu.

Fiquei sozinho e reparei então que a antecâmara tinha diversas portas, umas ao lado das outras, todas iguais, mas com símbolos distintos. Os símbolos eram os de Ioan e ocorreu-me que essa câmara era idêntica à da passagem do primeiro grau, com a diferença de que na outra o caduceu não existe.

Penetrei então nas portas uma após outra, tendo começado pela do caduceu. Vi aí um mundo de dualidade absoluta. Um mundo dividido a meio por uma espécie de linha existencial, tendo à minha esquerda a luz deslumbrante e à minha direita a mais absoluta escuridão. Penetrei exactamente a meio, e a meio, rompendo luz e trevas, fui tão longe quanto pude. Dei-me conta de que seres distintos, uns habitando a luz e outros a treva, tentavam cada um levar-me para a sua metade do mundo. Recusei ambas e compreendi que ali era o mundo da realidade dupla e impossível de se fundir. Pude deste modo entender os perigos do intelecto humano quando escolhe um tipo de realidade em detrimento de outros. Ali me libertei da minha própria dualidade.

Penetrei depois na porta da espada e entrei num mundo em guerra total e absoluta. Todos se batiam, uns contra os outros. Dei-me conta de que havia soldados de diversas épocas e tipos, sendo comum a todos o objectivo de combater e aniquilar o adversário. O cenário reproduzia, creio, o pior daquilo que o homem criou em todas as guerras por ele feitas. Ao contrário da porta do cálice, onde Maria tinha penetrado, ali não havia sofrimento e loucura, mas apenas a vontade animalesca de aniquilar tudo em função da guerra. Compreendi o quanto a guerra era inútil, já que é eterna e vive do conflito humano que habita o próprio homem. Esgotei, também em mim, esse guerreiro que já fui um dia.

A seguir entrei na porta do livro e vi um mundo perfeitamente organizado, um mundo regido pelo intelecto no seu mais elevado nível, mas, talvez por isso, estéril e absolutamente vazio de sentido. Tudo tinha sido planeado, combinado, e funcionava como as máquinas funcionam. Era um mundo ligado à tecnologia, à ciência, ao conhecimento. Muito limpo, muito arrumado, totalmente disciplinado, e no entanto tão falho de vida. Percebi que era o mundo tecnocrático e que a sua maior qualidade era simultaneamente o seu maior defeito: a organização excessiva a que tudo tinha sido sujeito. Gastei ali a necessidade de organizar tudo no plano da mente sem tomar em conta as necessidades individuais.

Por fim entrei na porta do bastão e vi um mundo desabitado. A perder de vista, fosse qual fosse a direcção, só se via o deserto escaldante, vermelho, devorado pelo fogo, devorado por uma luz simultaneamente viva e incandescente. Senti que era o mundo dos despojados, daqueles que tudo abandonam numa renuncia ao prazer e às pequenas alegrias da humanidade. Lugar de ascetismo, era uma espécie de antecâmara para essa absorção na luz do próprio Deus. Também com esse lugar me não identifiquei, sentindo até que escondia perigos. Ali gastei a minha necessidade de isolamento, de afastamento dos outros, e de me imolar por um ideal de vida ascética.

Tendo regressado da minha peregrinação, tendo abandonado os diversos aspectos da minha própria pessoa, achei-me de novo a meio da antecâmara. Então vi abrir-se o céu, vi o Mestre que me estendia as mãos, e lentamente ascendi.

Pela mão do Mestre entrei em contacto com as grandes inteligências cósmicas, esses que orientam e velam pela vida em todos os níveis. Despojado de corpo, despojado de qualquer limitação ou ideia própria, penetrei e fui absorvido pelos que velam sem descanso. Nessa condição fiquei e permaneci.

JC