quinta-feira, 3 de março de 2011
Poema para maria (a do retracto)
Essa cadeira no prado é a chave de tudo
a cadeira e o vento e as estações que passam
e aqueles que lá vão para olharem
nunca para se sentarem, e depois partem
impossível definir esta situação
situá-la no tempo
decifrar-lhe a mensagem
uni-la ao retrato e á moldura
e a ti, maria
quem te sonhou, quem te fez carne
e depois partiu
foi um deus, diz-me
só um deus ou um louco poderia
ousar tanto e tão pouco
esconder-te dentro de ti que és outra
e todas e nenhuma
os homens não seriam capazes desse crime
oh maria
estás absolvida daquilo que não foste
até esta alma canta contigo
até esta dor na garganta me fere, se o digo
e repeti-lo-ei milhões de vezes
endoideço maria e já não dou conta
à superfície tudo é banal e parecido
é no fundo que as águas se misturam
não nesta superfície de gestos
e canções para embalar a vida
que já nasceu decepada
não te decifro nem sei de ti
algures na noite estou aí
prestes a desabrochar
e é esse o meu milagre
tão quotidiano como a morte
ou a vida, juntas
entendes, maria
entendes esta dor inútil
este credo que outro inventou
e eu só repito
ah maria
eu queria apenas abrir-te
como se abre uma porta sobre um quarto escuro
abrir-te como se fosses uma flor
e a primavera tardasse
mas vivo consumido
e não sei estar
alegra-te maria
vem aí alguém que não somos nós
vê, traz um ramo de rosas murchas
e não tem pena
que bom sentir assim
desnudar-te como se fosses uma criança
e partir para onde nasce o mundo
diz-me quem te fez mulher
é esse que tem a culpa
o teu corpo
o teu corpo é outra miragem
como a cadeira lá longe
no meio do prado
Lisboa, Maio 85
JC
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